24/01/2011 – Globo Rural
O pequizeiro é uma árvore importante para várias tribos indígenas do Brasil. No Parque Indígena do Xingu, são diversas as etnias que festejam a colheita do seu fruto. A reportagem mostra o que o pequi representa na cultura dos índios kuikuros. O parque indígena do Xingu tem 2,6 milhões de hectares, tamanho equivalente ao estado do Sergipe. Fica na região nordeste de Mato Grosso, zona de transição entre o cerrado e Amazônia. É a maior floresta contínua do Estado. Dentro do parque, cortado pelo rio Xingu e seus afluentes, moram cinco mil índios de 14 etnias. Entramos no parque indígena do Xingu pelo extremo sul da reserva, que faz divisa com o município de Canarana. Descemos o rio Coluene e viajamos cerca de 200 quilômetros para chegar a aldeia Kuikuro.
Alguns jovens ajudaram no transporte da nossa tralha. Acomodamos tudo no caminhão da associação dos índios Kuikuros e rumamos para a aldeia, que fica a uns seis quilômetros da beira do rio. Além dos equipamentos e da comida, levamos três tambores de óleo diesel para o gerador da tribo. A região não rede elétrica.
Os kuikuros falam uma língua da família caribe, herança da época que viviam nas fronteiras do Brasil com a Venezuela e a Guiana. São mais de 700 índios, É a maior e uma das mais antigas tribos do Xingu. Acredita-se que a migração deles para a região se deu há mais de mil anos. Na época, eles eram nômades e viviam só do extrativismo. Quando se fixaram no Xingu, os Kuikuros passaram a praticar a agricultura. As ocas chamam a atenção de quem visita as aldeias do alto Xingu. São construções gigantescas. As maiores chegam a ter 25 metros de cumprimento, dez metros de altura e mais de oito metros de altura. O cacique Afucacá disse que a cobertura é de sapé. “Em época de chuva, não chove. Fica bem fresquinho dentro”, lembrou. Dentro é escuro, adverte ele, porque não tem janelas. As únicas aberturas são duas portas: uma à frente e outra nos fundos. Cada oca é habitada pela linhagem completa da família: os avós, filhos e netos. Quando eles se casam, quem sai de casa é o homem. A divisão do espaço é muito simples. Nas laterais são armadas as redes de dormir e no centro fica a cozinha. Afucaca disse que a função dele como cacique é lutar para não deixar morrer a cultura milenar dos kuikuros. “Dentro da aldeia, nossa tradição está viva. O colar de caramujo, que estou usando, faz parte da tradição”, explicou.
Aos poucos, os kuikuros vão abrindo as portas da aldeia para a cultura dos brancos. No lugar já tem até equipe de TV. Eles foram treinados pelos técnicos da organização não-governamental Vídeo nas Aldeias que, em parceria com o Museu Nacional do Rio de Janeiro, ensinou os índios a operar câmeras de filmagens para registrar a cultura deles.
O pequizeiro é uma árvore importante para várias tribos indígenas do Brasil. No Parque Indígena do Xingu, são diversas as etnias que festejam a colheita do seu fruto. Está reportagem mostra o que o pequi representa na cultura dos índios kuikuros.
FESTANÇA NA ALDEIA
A segunda parte da reportagem sobre os índios kuikuros, do Xingu, mostra a festa da colheita do pequi, celebrada na aldeia com brincadeiras e muita dança.
O pequi é uma das frutas mais ricas em vitamina A e também contém vitaminas C e B, além de proteínas e outros micronutrientes. Com sua polpa as mulheres fazem vários pratos. O doce de pequi não leva açúcar. Aliás, no lugar não existe açúcar de cana. Elas selecionam as espécies de pequi mais adocicadas e cozinham durante horas, até o açúcar da fruta se concentrar no fundo da panela.
Um prato muito apreciado pelos kuikuros é a sopa de castanha de pequi. Leva pimenta verde, água e castanha cortada em pedacinhos. É um prato salgado. O sal deles é feito de aguapé, planta aquática muito comum em lagoas e rios. Depois de secar ao sol, o aguapé é queimado. As cinzas levam vários dias para apurar a cor. O sabor é picante e lembra a raiz forte. O óleo de pequi extraído da polpa e da semente é rico em betacaroteno. Com ele as índias amaciam os cabelos e protegem a pele dos raios de sol.
A divisão das tarefas entre homens e mulheres é bem definida na aldeia dos índios kuikuros. Buscar os alimentos na roça, por exemplo, é função da mulher. Por isso, no mutirão que vai fazer a grande colheita para o encerramento da festa do pequi só tem mulheres e crianças. Elas seguem pela alameda de árvores de pequi plantadas pelos homens da tribo.
A tarefa de derrubar o mato e cultivar a roça é dos homens. Só os homens podem ocupar a função de cacique. Afucaca herdou o cargo do pai dele. Ele mora na oca com sua família. Duas mulheres, irmãs, são esposas do cacique. No lugar, é normal o homem ter mais de uma mulher. No total, eles têm nove filhas e apenas um filho homem.
O cacique disse que vai colher sementes da safra deste ano para plantar uma roça de pequi para sua filha caçula, Dieré. Ele explicou que essa é uma tradição dos kuikuros. Para cada filho que nasce o pai tem que semear as árvores que vão garantir a alimentação dele no futuro.
“Ai quando crescerem os filhos e os netos, a gente passa para eles para cuidarem do plantio. Eu vou plantar 50 pés para minha caçula e ela vai poder começar a colher os frutos daqui uns dez anos”, calculou o cacique. O cacique Afucacá e seu filho Tauaragui seguem em direção à roça. Na cestinha eles levam as sementes de pequi que vão plantar para Dieré.
O plantio do pequi é feito sempre no meio do mandiocal. Eles exploram uma roça de mandioca durante três anos. Depois, deixam a área só para a formação do pequi. Afucacá faz questão que seu filho o acompanhe neste ritual. Eles encaram o plantio de uma roça como um ritual, com oração e tudo.
Tauaragui está sendo preparado para substituir Afucacá como chefe da tribo. Quando seu pai morrer, ele será o novo cacique Kuikuro e assumirá a tarefa de manter viva a tradição do povo.
O cacique explicou para o filho que a cova tem que ser rasa e a semente colocada sempre com o olho para cima porque é onde ela vai germinar.
Na aldeia existem plantas bem antigas. Todas as árvores que forneceram frutos para a festa foram semeadas há mais de 50 anos. O engenheiro agrônomo Marcus Schmidt, do Instituto Sócio Ambiental, organização não-governamental que trabalha no Xingu, disse que foi feito um inventário das árvores de pequi plantadas pelos índios.
“A gente fez uma estimativa em torno de 14 mil pés de pequi. É a maior riqueza do Xingu e graças ao manejo dos índios. O dia que o Brasil descobrir realmente o potencial do pequi, não precisará investir tanto em técnica porque já existe a técnica. A gente pode ver aqui”, disse o engenheiro.
O pequi do Xingu é uma espécie amazônica que pertence à família cariocácea, a mesma do pequi do cerrado. A diferença é que as espécies da região são gigantes e foram selecionadas e cultivadas pelos índios há centenas de anos. Por isso, a diversidade é bem maior.
O fruto de pequi que estamos acostumados a ver no cerrado de Goiás e Minas tem o caroço amarelado. No Xingu, há variedades de pequi branco, laranja, amarelo. Alguns têm espinho, mas todos são suculentos e doces. Cortando dois caroços ao meio, um do pequi sem espinho e outro do pequi comum, é possível ver a diferença.
As mulheres vão colhendo os frutos e retirando os caroços na roça. Isso facilita muito o transporte do pequi até a aldeia. As mulheres caminham até o centro da aldeia, levando bacias e cestos carregados de pequi, para tirar a polpa. Vai começar a preparação de vários pratos. No final da fila, seguem os homens de mãos abanando. Já as mulheres sofrem tanto com o peso das bacias e com o calor que, aos poucos, vão se despindo pelo caminho. A chegada delas na aldeia é motivo de muita alegria. O cacique chega para anunciar que a dança de encerramento da festa vai começar. Homens, mulheres e crianças vão deixando as ocas para a dança do pequi. É hora das homenagens ao beija-flor, o dono do pequi. A dança pega fogo quando todos se encontram na casa do dono da festa, onde começam também as provocações entre homens e mulheres. Muitos índios fazem insinuações de cunho sexual e provocam a ira delas. O jogo é uma brincadeira; mas quem vê, pensa que é briga de verdade.
O bafafá, que começou dentro da oca, foi registrado pelas câmeras dos kuikuros. O homem que provocou a mulher foi arrastado para fora da oca. Mesmo com a ajuda do amigo, ele não consegue se livrar dos braços dela. O homem se defende, mas não agride as mulheres. Uguissapa, o festeiro, interfere e livra o índio das garras delas. Mas, as mulheres ainda continuam exaltadas com as provocações.
Aos poucos, a paz volta e recomeça a cantoria. A festa dura mais de uma semana e só termina quando os últimos frutos de pequi maduro caem no chão. No ano seguinte, uma nova safra voltará a agitar a aldeia. Novos pomares serão plantados para os indiozinhos recém-nascidos e o aroma do pequi maduro mais uma vez vai inspirar as danças, os cantos e músicas dos kuikuros do Xingu.
Os kuikuros têm um grande orgulho do que já conseguiram com o pequi: o desenvolvimento de uma técnica de cultivo e a seleção de diversas variedades. Por isso, gostariam que o mundo inteiro reconhecesse essa contribuição dada por eles à agricultura.