15/12/2014 – Globo Rural On-line – POR GERALDO HASSE
À beira da extinção, coquinho popular no sul do país vira objeto de pesquisa da Embrapa pelas suas propriedades nutracêuticas
Cena comum nos meses de verão na BR-101 perto de Laguna, no sul catarinense: os viajantes param no acostamento para comprar suco de butiá gelado vendido em carrinhos de picolé. Duas garrafinhas de 500 mililitros custam R$ 5. O suco é uma delícia caseira produzida em liquidificador e que pode durar dias na geladeira.
O butiá é um coquinho amarelo que dá em cachos de novembro a abril. Pode ser consumido in natura ou em forma de suco, sorvete, iogurte ou bolo. Ou como adoçante de cachaça, seu formato mais antigo, visível ainda em garrafas nos balcões e prateleiras de armazéns e bares do interior ou de arrabaldes.
Perfeitamente na onda dos produtos orgânicos, a expansão do consumo popular do butiá conta agora com o respaldo da agronomia brasileira. Uma rede de pesquisadores baseados na Embrapa Clima Temperado, de Pelotas, vem trabalhando com o coquinho do butiazeiro, palmeira que apresenta 18 espécies no Brasil, oito delas no Rio Grande do Sul. A mais comum é a Butia odorata, que vai do norte da Lagoa dos Patos ao interior do Uruguai, onde a planta foi bem mais preservada do que no Brasil.
A bióloga Rosa Lia Barbieri, que estuda a genética da planta em Pelotas, diz que os financiamentos obtidos nos últimos anos permitiram ampliar a pesquisa, mas os resultados são ainda escassos. “Estamos engatinhando”, diz ela, lembrando que o butiá faz parte, ao lado do araçá, da pitanga e da uvaia, do programa de pesquisa e desenvolvimento da Embrapa sobre frutas nativas do sul do Brasil.
Usos e costumes – Vencida a fase inicial da pesquisa, a Embrapa tem mapeadas as principais reservas nativas de butiazeiros, que ocorrem mais no litoral que no interior. Além disso, identificou usos e costumes em cidades onde se encontram pessoas empenhadas em cultivar e processar frutas nativas. Em Pelotas mesmo, o maior parceiro é Ubirajara Martins, de 56 anos, que mantém pomar e indústria caseira de doces, sucos e conservas. “Nós estamos saindo do paradoxo que envolve a fruticultura brasileira”, diz ele, referindo-se ao fato de que “os produtores sabem tudo sobre frutas exóticas e quase nada sobre as nativas”. Com o butiá, Martins fez testes de engarrafamento do néctar, mas falta desenvolver relações seguras com fornecedores, pois sem matéria-prima nenhuma agroindústria chega a uma escala de produção regular o ano inteiro. Em seu pomar, Martins está recém-começando a fazer ensaios de adubação, poda, espaçamento e outros parâmetros de manejo. No item germinação, técnicos da Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária (Fepagro) implantaram, em 2008, um banco de germoplasma que já tem árvores de segunda geração, prova de que se conseguiu abreviar o tempo médio de frutificação, estimado em sete anos em butiazais nativos (ainda não há pomares cultivados com fins comerciais). “No pomar de Viamão, temos árvores que frutificaram aos quatro anos”, diz Gilson Schlindwein, um dos autores do protocolo de germinação das sementes do butiazeiro. O procedimento tem três etapas. Na primeira, o caroço despolpado é submetido a uma secagem forçada. Na segunda, ele é enterrado por três semanas em solo bem hidratado e pré-aquecido a 40 ºC. Por fim, na última etapa, que corresponde à pré-germinação, a temperatura é reduzida para 30 ºC. Nessas condições, a germinação ocorre, em média, em 35 dias, descontada a grande variabilidade genética das amostras usadas.
Embora já difundida entre os técnicos, essa tecnologia ainda não está sendo empregada em viveiros comerciais, onde um butiazeiro adulto – para uso ornamental – não sai por menos de R$ 300 entre os produtores de mudas de Pareci Novo (RS), no Vale do Rio Taquari. A muda nova, que demora pelo menos três meses para chegar a 30 centímetros, custa R$ 10. Segundo Samuel Zimmer, filho do maior viveirista de Pareci Novo, a procura por mudas de butiazeiro é pequena – menor que por araçazeiro.
Índios já sabiam – Outro que se adiantou na pesquisa do potencial do butiá como matéria-prima agroindustrial foi o biólogo Marcelo Rossato, da Universidade de Caxias do Sul. Em seu doutorado, concluído em 2007, sob orientação de Rosa Lia Barbieri, ele estudou os óleos contidos na fruta. Rico em vitamina C, o butiá possui uma amêndoa cujo óleo se assemelha ao da azeitona: além de possuir flavonoides, contém o ácido linoleico, um poderoso antioxidante.
Segundo Rossato, o poder nutracêutico do butiá era conhecido dos índios, que carregavam a amêndoa em sua embalagem natural – o coquinho – em suas caminhadas. Estudos de etnobotânica identificaram os sinais de uma “rota butiazeira” do Rio Grande a Foz do Iguaçu.
Os butiazais de outrora foram dizimados pela agricultura mecanizada. Considerado “em extinção”, o butiazeiro está sob vigilância de órgãos ambientais. Alguns técnicos já o equiparam às cinco árvores legalmente imunes ao corte no Rio Grande do Sul: a canela, o cedro, a corticeira, a figueira e o pinheiro-do-paraná.
Longe de ameaças – Se há um reduto rio-grandense onde o butiazeiro não está ameaçado é a Coxilha das Lombas, entre Barra do Ribeiro e Tapes, a 100 quilômetros de Porto Alegre. Num levantamento feito pela Embrapa em 2010, estimou-se em 70 mil o número de butiazeiros, que se concentram em 700 hectares nos fundos da Fazenda São Miguel, propriedade de 2.700 hectares.
O butiazal da Fazenda São Miguel é sagrado para a família da proprietária, Nair Heller de Barros, de 90 anos. Num vídeo gravado em 2010, Dona Nair contou que era bem criança quando as pastagens da fazenda foram destruídas por uma nuvem de gafanhotos, mas os butiazeiros permaneceram intactos. “Isso aqui é uma reserva de Deus”, disse ela, repetindo a frase pronunciada pelo seu pai logo depois da assustadora passagem dos insetos bíblicos. Na época, por volta de 1928, a fazenda aproveitava a folha do butiazeiro para produzir crina vegetal para estofamento de colchões e sofás.
O extrativismo acabou, mas o butiazal é mantido como reserva ecológica. Segundo Rodrigo Barros, filho de dona Nair, a família não explora o butiazal em respeito à legislação ambiental. “O butiazal faz parte da Mata Atlântica”, diz ele, lembrando que a partir de 2013 a fazenda colocou em prática uma parceria com a Embrapa para promover sua regeneração.
É um projeto que aproveita o conhecimento desenvolvido pelo Uruguai na manutenção de seus butiazais nativos. Até onde se sabe, o butiazeiro dura tanto quanto uma tamareira – séculos. Mas falta desvendar todos os mistérios de sua germinação, polinização e frutificação. Nem sequer se sabe por que alguns butiás são amargos, outros doces e alguns azedos. Mas no Sul todo mundo conhece a frase “me caíram os butiás do bolso”, usada como equivalente a “me caiu à ficha”.