Fonte: Embrapa – Izabel Cristina Drulla Brandão e Siglia Souza
Poucas pessoas fora do meio rural ou acadêmico relacionam o processo de domesticar a plantas ou frutas. Costuma-se associar o termo “domesticado” a animais, mas nunca ao açaí na tigela proveniente da cultivar BRS Pará, por exemplo, ou ao cupuaçu da BRS Carimbó no recheio do bombom. No entanto, nos bastidores da ciência e experimentos de campo, desde o Instituto Agronômico do Norte (IAN), fundado em 1939 e precursor da Embrapa Amazônia Oriental, a domesticação de fruteiras amazônicas progride ano a ano em direção a cultivos, à redução dos custos de produção e do preço final da fruta, ao aumento da oferta e qualidade dos produtos, inclusive os agroindustriais, a novas opções de emprego e renda e a alternativas para recuperação de áreas de reserva legal (ARLs) e proteção permanente (APPs).
Domesticar plantas, de forma geral, significa alguém tirá-las do ambiente natural porque têm alguma utilidade, como árvores que produzem frutos comestíveis, para plantá-las próximo às casas ou desenvolver plantios em maior escala. A domesticação acaba por resultar na prevalência de características genéticas superiores que atendam às necessidades humanas, como frutos maiores, mais doces, menos caroços ou árvores mais baixas para facilitar a colheita.
No caso da Amazônia, muito antes de os grupos de pesquisa entrarem em cena ou os caboclos experimentarem novidades em seus quintais, os povos pré-colombianos da região já colocavam em prática seu conhecimento tradicional milenar na domesticação primitiva de castanheiras e pupunheiras, entre outras. “Domesticavam para sobreviver, num trabalho empírico, lento e minucioso, ao passo que atualmente procura-se mais atingir objetivos econômicos, como o maior rendimento de polpa, cabendo à pesquisa modificar o padrão genético da espécie tendo em vista a obtenção das características desejadas”, observa o pesquisador José Edmar Urano de Carvalho, da Embrapa Amazônia Oriental (Belém).
Os bancos ativos de germoplasma (BAGs) e coleções de fruteiras e palmeiras nativas da Amazônia, indispensáveis para conservação de recursos genéticos para programas de melhoramento, como os existentes na Embrapa Amazônia Oriental e Embrapa Amazônia Ocidental, são referências mundiais. Da mesma forma, ao estabelecerem as bases para a formação de pomares uniformes, produtivos, bem manejados, resistentes a pragas e doenças, com materiais selecionados, pesquisadores das Unidades da Embrapa na Amazônia, junto com técnicos, agricultores e populações tradicionais, por vezes em parceria com outras instituições, fazem história. São pioneiros em várias frentes desse conhecimento, até mesmo nas formas de construí-lo em conjunto e socializá-lo com os públicos de interesse.
Esses cientistas buscam técnicas de manejo, métodos de propagação por semente ou muda, adubação e nutrição, sistemas de produção (em especial a utilização de espécies frutíferas amazônicas em sistemas agroflorestais), clones e cultivares, entre outras tecnologias para uso da terra, que sejam, ao mesmo tempo, economicamente viáveis, ambientalmente sustentáveis e socialmente justas. Essas premissas apresentam-se indispensáveis em uma região que abriga as naturezas maiores do mundo – maior floresta tropical do planeta, o maior banco genético, a maior bacia hidrográfica, o maior bioma -, mais de 20 milhões de habitantes e, na vida agrícola, uma maioria de agricultores familiares descapitalizados com baixo nível tecnológico e baixa eficiência econômica na produção.
O Brasil das frutas
“O Brasil é o segundo grande centro de origem de espécies frutíferas tropicais, atrás apenas do Sudeste Asiático. Na Amazônia Brasileira concentram-se 44% das 500 espécies de frutas nativas do País. Estudos mencionam a existência de 220 plantas produtoras de frutos comestíveis na região, mas ainda são poucas as domesticadas, vindo a maioria do extrativismo”, situa Urano de Carvalho, que, em seu artigo “Frutas da Amazônia na era das novas culturas”, de 2012, enfoca a importância de frutíferas amazônicas e detalha suas perspectivas futuras, intercalando dados recentes com curiosidades históricas.
“A Amazônia é o último reduto de plantas potenciais à espera da domesticação e nossa vantagem é podermos no presente assistir, protagonizar e registrar esse processo bem de perto, passo a passo. Frutas exóticas, que vieram de fora, como maçã e laranja, estão sendo transformadas há séculos, num processo contínuo cuja memória inicial se perdeu no tempo. A humanidade começou a domesticar plantas há dez mil anos, enquanto a história da domesticação das frutas amazônicas nem bem começou a ser escrita”, constata o pesquisador Alfredo Kingo Oyama Homma, também da Embrapa Amazônia Oriental.
Homma é editor técnico do livro Extrativismo vegetal na Amazônia – história, ecologia, economia e domesticação. A obra, lançada em 2015, é uma coletânea de trabalhos resultantes de pesquisas sobre produtos extrativos desenvolvidas nos últimos 20 anos. Esse é justamente o período em que o crescimento do mercado de frutas regionais se acelerou, sacudindo os atores das cadeias produtivas, entre eles produtores, pesquisadores e comerciantes, obrigando-os a procurar soluções capazes de suprir a demanda durante o ano todo, não só na safra, potencializada pelo avanço de técnicas de beneficiamento e congelamento de alimentos.
Algumas frutas nativas da Amazônia, por outro lado, são há muito cultivadas em larga escala, como abacaxi (Ananas comosus L.), cacau (Theobroma cacao L.), caju (Anacardium occidentale L.) e maracujá (Passiflora edulis Sims). Com o progresso da agronomia e da engenharia genética, é possível abreviar o processo de domesticação, mas, conforme Homma salienta, um tempo mínimo de cinco a dez anos, mais até, é necessário para se efetuar a seleção de uma planta adequada, fixando a parte útil que interessa para ser comercializada, a exemplo das características superiores de resistência a doenças, maior produtividade, adaptação ao ambiente, qualidade final do produto e maior longevidade.
Da coleta ao cultivo
Os avanços tecnológicos alteraram os padrões de oferta das frutas nativas. Várias passaram a vir de áreas manejadas e cultivadas. Alfredo Homma informa que o guaraná já provém totalmente de plantios, sobretudo da Bahia. A castanha-do-brasil, apesar da imagem extrativa predominante, conta com sistemas produtivos responsáveis por 3 a 5% da produção oriunda de castanhais cultivados e em expansão.
O bacuri, de polpa mais cara entre as frutíferas nativas da Amazônia, com 95% da produção na região Norte concentrados no Pará, também começa a chegar aos mercados proveniente de áreas de manejo, porém o extrativismo ainda impera. O Pará também concentra a maior produção de cupuaçu do Norte (65%), quase totalmente de cultivos comerciais, os mais antigos, iniciados nos anos 1970.
O tucumã-do-amazonas e a pupunha, que empatam no gosto popular quando consumidos com café, o primeiro entre amazonenses (em lascas no “x-caboquinho”) e entre paraenses (cozida), estão separados pela distância tecnológica. Enquanto a pupunha – única palmeira amazônica totalmente domesticada – é plantada, a oferta de tucumã ainda é totalmente extrativa.
Se o consumo dessas duas é forte, o mesmo não acontece com o muruci. Segundo o pesquisador Urano de Carvalho, a fruta, que atraiu a atenção de renomados chefs de cozinha por seu aroma e gosto salgado, lembrando queijo, está sendo resgatada pela pesquisa para que a população recupere o hábito de consumo e a fruta não desapareça definitivamente do mercado. Carvalho conta que antigamente as frutas nativas eram mais consumidas na região, mas a facilidade de transporte trouxe outras de fora e as amazônicas foram relegadas à posição secundária. Ou então tornaram-se caras e escassas, como bacuri e pequiá, porque suas árvores fornecem madeira e por isso são derrubadas.
Fenômeno contrário aconteceu com o açaí, a estrela do time, que há duas décadas é alvo de crescente demanda entre consumidores no Brasil e exterior, com reconhecidos benefícios à saúde por seu alto teor de antocianina (antioxidante) e fibras. Em 2014, de acordo com Carvalho, o fruto do açaizeiro ocupava o primeiro lugar na produção de frutas no Pará (foram quase 800 mil toneladas, cerca de 95% da produção nacional e 90% do Norte), o segundo na região Norte e o décimo terceiro no Brasil (vindo logo após o maracujá e com volume de produção superior ao do melão e da goiaba). Em sua maior parte, o açaí é proveniente do manejo, em segundo lugar de açaizeiros plantados em terra firme (com e sem irrigação) e, em menor escala, de açaizais extrativos.
Avanços tecnológicos
Por Izabel Cristina Drulla Brandão
Trabalhos de domesticação já determinaram avanços tecnológicos aos cultivos do guaraná (Paullinia cupana Kunth), da castanha-do-brasil (Bertholletia excelsa H&B) – conhecida também como castanha-do-pará, açaí (Euterpe oleracea Mart.), cupuaçu (Theobroma grandiflorum (Willd. ex Spreng.) K.Schum.) e pupunha (Bactris gasipaes Kunth).
Projetos recentes colocam em destaque o bacuri (Platonia insignis Mart.), uxi (Endopleura uchi (Huber) Cuatrecasas), camu-camu (Myrciaria dubia (Kunth) McVaugh), tucumã-do-amazonas (Astrocaryum aculeatum G.F.W. Meyer), tucumã-do-pará (Astrocaryum vulgare Mart.), abiu (Pouteria caimito (Ruiz et Pavon) Radlk), pequiá (Caryocar villosum (Aubl.) Pers.), taperebá (Spondias mombim L.) e muruci (Byrsonima crassifolia (L.) Rich.) – ou cajá e murici, como são conhecidos no Nordeste -, “entre outras dezenas de espécies nativas em estudo com potencial produtivo e de interesse econômico, consideradas de futuro promissor”, exemplifica a pesquisadora Walnice Oliveira do Nascimento, da Embrapa Amazônia Oriental
No compasso da domesticação
Por Izabel Cristina Drulla Brandão
Algumas tecnologias disponibilizadas pela Embrapa na Amazônia são um marco na história das fruteiras e palmeiras nativas. Confira:
A segunda cultivar de terra firme está em final de experimentos no Pará, para produção na entressafra a partir de irrigação por microaspersão e geração de frutos pequenos (rendem mais suco no processamento).
Manejo de Açaizais Nativos de Mínimo Impacto, para áreas de várzea, lançado pela Embrapa Amapá (Macapá, AP) em 2001, com impactos positivos na produtividade, entre outros benefícios.
As cultivares BRS 297, BRS 298, BRS 299, BRS 311 e BRS 312, com resistência acima de 85% à vassoura-de-bruxa, foram lançadas em 2014 pela Embrapa Amazônia Ocidental, Unidade em que o manejo da broca-do-cupuaçu, principal praga que afeta os cultivos, também é estudado. Alguns resultados nesse campo são a recente identificação do feromônio do inseto e de substâncias voláteis produzidas pelos cupuaçuzeiros com possível influência no comportamento da broca. O processo de substituição de copa do cupuaçuzeiro para combate à vassoura-de-bruxa foi utilizado pela primeira vez em 1997 no Pará.
Para a agroindústria, o processo de fabricação do cupulate (chocolate à base de amêndoa de cupuaçu) está descrito desde 1990 no Boletim de Pesquisa de número 108, editado pela Embrapa Amazônia Oriental.
Já o Banco Ativo de Germoplasma (BAG) de guaranazeiro desse centro de pesquisa, formado nos anos 1980, é considerado único no mundo por reunir cerca de 270 clones diferentes da espécie.
Açaí bem manejado
Por Dulcivânia Freitas
Açaizal bem manejado garante mais renda para o produtor e preserva a diversidade da floresta. O duplo benefício é obtido quando se aplica a técnica conhecida como “Manejo de mínimo impacto de açaizais nativos”, que permite aos agricultores um verdadeiro salto na produtividade das suas lavouras – de um patamar de 20 a 30 sacas (cerca de 52 quilos), em média, por hectare para até 100 sacas. Outros impactos positivos são a geração de renda e emprego, além da ampliação de ocupação da força de trabalho familiar, segundo estudos relatados por analistas da Embrapa Amapá.
O “Manejo de mínimo impacto” foi desenvolvido pela Embrapa com base em levantamentos realizados por pesquisadores em açaizais nativos manejados pelos produtores e em experimentos e módulos estabelecidos em diversos tipos de açaizais. É utilizado desde 2002 por produtores de açaí do estuário amazônico, nos estados do Amapá e do Pará.
A tecnologia é baseada no princípio da combinação adequada de açaizeiros e outras espécies florestais. “A boa distribuição das árvores no açaizal garante boa produção de frutos, melhora a qualidade e o rendimento de polpa e reduz o trabalho de limpeza do açaizal”, afirma o pesquisador da Embrapa Amapá Silas Mochiutti, doutor em Ciências Florestais.
O consenso é de que o açaizal manejado produz mais frutos e de melhor qualidade. Mas, para conservá-lo produtivo, é preciso fazer a manutenção a cada dois anos, por meio de roçagem e retirada das palmeiras finas e com mais de 12 metros. A demonstração prática do manejo de mínimo impacto dos açaizais nativos vem sendo disseminada, nos últimos dez anos, para produtores e extensionistas rurais do Amapá, por meio de palestras e treinamento prático em áreas de terra firme, em ambiente de floresta de várzea do Campo Experimental da Embrapa em Mazagão e também em açaizais de produtores parceiros. O objetivo é sempre transferir conhecimentos visando ao aumento da produção de frutos de açaí e também à manutenção da diversidade florestal no estuário amazônico.
No período de 2009 a 2013, os números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) mostram crescimento significativo na produção e no preço do fruto de açaí no Estado do Amapá. Enquanto em 2009 foram registrados em torno de 115 mil toneladas, totalizando uma rentabilidade de R$ 160 mil, em 2013 a produção atingiu 202 mil toneladas e renda estimada em R$ 409 mil. De acordo com a análise da Embrapa Amapá, isso é consequência dos diversos manejos praticados pelos ribeirinhos no extrativismo do açaí.
Izabel Cristina Drulla Brandão – Embrapa Amazônia Oriental
Siglia Souza (MTb 66/AM) – Embrapa Amazônia Ocidental